Maniqueísmo é uma visão de mundo com origens filosófico-religiosas que concebe a vida segundo um dualismo entre poderes opostos e incompatíveis: algo como o bem e o mal absolutos. É de uma concepção maniqueísta que surgem mocinhos e vilões recorrentes e estereotipados em filmes de Hollywood e – mais grave – polarizações políticas como a que vivemos no Brasil hoje. É uma atitude maniqueísta que faz as pessoas “abandonarem” a racionalidade e ficarem cegas a nuances de questões complexas.

O assim chamado rol taxativo, que vem sendo muito falado e discutido desde o início de junho, é uma questão que parece ter sido talhada sob medida para suscitar opiniões e posturas maniqueístas. Há cerca de 3 semanas, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que a lista de tratamentos cobertos por planos de saúde – o chamado “rol” da Agência Nacional de Saúde (ANS) – deve ser considerada taxativa, o que supostamente desobriga os convênios médicos a cobrir procedimentos (exames, terapias, cirurgias, fornecimento de medicamentos) que não estejam nela previstos.

De um lado, porta-vozes das operadoras de saúde falam de um cenário “catastrófico” caso a decisão tivesse sido em contrário (considerando o rol como exemplificativo), o que abriria margem para que fossem contemplados procedimentos não previstos na lista, inclusive por vias judiciais. A alegação, plausível, é que sem saber quais tratamentos são obrigados a oferecer, por lei, os planos não têm a previsibilidade de custos indispensável para calcular o valor dos serviços que oferecem.

De outro lado, muitos pacientes – inclusive com doenças graves e crônicas – que hoje recebem tratamento devido a liminares e outros mecanismos legais, alegam que a exclusão de procedimentos possivelmente resultante da decisão do STJ terá impacto tão profundo no atendimento às pessoas que vai acabar tirando vidas. Também é um argumento bastante forte e impossível de ignorar.

Qual seria, então, a decisão mais “correta”, mais adequada, “do bem”? Provavelmente, ela não existe: é uma imposição da realidade que em muitos casos não há uma alternativa em que todos saiam ganhando, ou ninguém se sinta, em alguma medida, prejudicado. Para evitarmos o maniqueísmo, portanto, vamos falar das nuances.

As nuances

Parece óbvio que uma prestadora de serviço – qualquer serviço – saiba previamente o que é obrigada a “entregar” por lei, para que possa se planejar. Quando a regulamentação é demasiadamente aberta, ou vaga, sempre haverá distorções e, talvez, abusos por parte do consumidor. 

Embora seja uma empresa prestando um serviço e cobrando por ele, o tema saúde é e sempre será sensível, e talvez não seja adequado, nem desejável, nem humano, que o segmento seja regido pela mesma lógica de outras áreas, nas quais a busca (legítima) exclusivamente por lucro não tem o potencial de comprometer saúde e vidas. 

A decisão do STJ não obriga as demais instâncias da Justiça a seguir seu entendimento, embora o julgamento sirva de orientação e provavelmente represente uma mudança na jurisprudência.

A decisão prevê exceções, como terapias expressamente recomendadas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), tratamentos para câncer e medicações off-label (usadas, com prescrição médica, para tratamentos que não constam na respectiva bula).

É possível contratar cobertura ampliada ou negociar aditivo contratual, e não havendo substituto terapêutico no rol, ou quando esgotados os procedimentos nele incluídos, pode haver, em caráter excepcional, a cobertura de tratamentos indicados por profissionais de saúde.

A imprevisibilidade financeira da operadora acaba por encarecer o plano adquirido por todos, pois é necessário que sua operação seja economicamente sustentável. Assim, o rol taxativo também tem potencial para beneficiar pacientes, ampliando o acesso à saúde suplementar ou diminuindo a pressão financeira sobre os já associados/usuários.

O que mudou foi a orientação jurídica para o entendimento do rol, agora visto como taxativo, mas o rol em si não está “congelado” e passa por atualizações periódicas de acordo com o desenvolvimento da ciência e da medicina. Ao entrar no rol, um tratamento para a ser obrigatoriamente coberto pelos planos. Há poucos dias, aliás – talvez já sob o efeito de certa pressão popular pós-decisão do STJ, que teve até vídeo de celebridade “global” nas redes sociais – a ANS decidiu ampliar as coberturas do rol para pessoas com transtornos globais do desenvolvimento, entre os quais está o transtorno do espectro autista (TEA).

É verdade que as operadoras de saúde têm junto à população em geral uma persistente imagem de quem pratica reajustes abusivos, alegando algo como “aumento dos custos de insumos e tecnologias da saúde”, também uma definição bastante genérica e vaga – como afirmam ser o rol exemplificativo.

A pouca transparência na relação com os clientes, resultante disso, faz com que eles tendam a não acreditar na redução de preços mesmo com a decisão sobre o rol taxativo. Justificada ou não – ou válida em alguns casos e noutros não – essa imagem não favorece discussões e decisões equilibradas e precisa ser considerada pelos players do mercado.

Antes do fechamento deste nosso artigo, um partido político entrou no Supremo Tribunal Federal com ação direta de inconstitucionalidade para suspender a interpretação que definiu o rol da ANS como taxativo. Como se sabe, no STF tudo pode acontecer, e recentemente têm dominado por lá decisões um tanto quanto improváveis.

O importante para quem tem de se demorar sobre a questão, como nós e nossos clientes, é tentar formar uma opinião baseada na realidade, em fatos, mas também conhecendo e respeitando perspectivas diversas e tendo em mente que, qualquer que sejam os desdobramentos futuros, alguém sairá contrariado. É a dinâmica da vida, em muitos casos.

Para enfrentá-la de forma produtiva, talvez o ideal seja aplicarmos ao máximo a característica que nos diferencia: a racionalidade. É mais fácil chegar à melhor solução para a maioria quando se dialoga sem o calor das paixões, sem rigidez e preconceito, sem ideologias extremas, sem considerar que sempre há bandidos e vilões – sem maniqueísmo.

 

Fontes
www.revistaapolice.com.br
www.g1.globo.com
www.stj.jus.br
www.noticias.uol.com.br/saude
www.oncoguia.org.br
www.jota.info